Nos 2400 hectares da Herdade Aldeia de Cima, no concelho da Vidigueira, não existe um pedaço de terra igual ao outro. As características particulares e a autenticidade deste lugar junto à antiga estrada romana entre Évora e Beja, atraíram e fixaram aqui população desde tempos imemoriais e foi nesta terra fresca, no topo de um planalto formado por uma rocha mãe de xisto, a 330 metros de altitude, que em 1758 se ergueu a pequena aldeia de Sant‘Anna da Serra do Mendro. É também aqui, no cume da Serra do Mendro que separa o Alto do Baixo Alentejo, a 424 metros de altitude, que em janeiro de 2017 nasce a primeira vinha plantada em patamares tradicionais no Alentejo e renasce o espírito comunitário de aldeia.
Um projeto sonhado pelo casal Luisa Amorim e Francisco Rêgo, e vivido em conjunto com as duas filhas. Luisa Amorim conhecia bem estas terras que foram propriedade do seu pai, Américo Amorim, criando desde muito cedo uma relação de proximidade com o Alentejo. A par da cortiça, central no seu universo familiar, há 20 anos que o vinho é uma das suas grandes paixões, assumindo sempre a gestão da Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, no Douro, e mais recentemente a Taboadella, no Dão. Recordando-se da frescura e da textura dos vinhos dos anos 1980 que a transportavam para um Alentejo antes da invasão das castas internacionais, Luisa Amorim, marcada pelo falecimento do seu pai, decide antecipar um sonho antigo. E, de forma quase prematura, em maio de 2017 desafia o seu enólogo no Douro, Jorge Alves, para experimentarem um vinho com uma forte tipicidade alentejana, texturado e fresco com castas portuguesas ou adaptadas ao lugar.
Foi precisamente na cota mais alta na Serra do Mendro, que Luisa Amorim sentiu um potencial “adormecido” que deu origem a este projeto. Explorando a elevada altitude de 424 metros e declives de 25 a 40 graus, um património geológico único onde se avista o vasto horizonte e onde podemos contemplar, maravilhados, a imensidão das terras alentejanas, os olivais e as vinhas, as hortas, os campos de searas e as pequenas vilas e aldeias de Vidigueira e ao longe a cidade de Beja, imaginou o lugar perfeito para uma vinha de patamares tradicionais, como no Douro.
Este é um Alentejo diferente, o da Serra do Mendro, pertencendo à unidade geomorfológica mais antiga da Península Ibérica e apresentando uma singularidade geológica designada por horst, que resultou da subida de um bloco de terreno do mar onde se acumularam milhares de metros de espessura de vasas. As terras que hoje pisamos de origem xistosa, granítica, gabroica, e quartzítica, entre muitos outros tipos de rochas de substrato são ainda uma amostra original do Maciço Antigo Ibérico. Estas rochas fazem a pobreza dos solos esqueléticos, que outrora serviram para alimentar as explorações de barros vermelhos presentes em todo o Alentejo.
Apesar da ideia generalizada de uma planície alentejana, da paisagem a perder de vista, dos campos de trigo que hoje não são mais do que paredes intermináveis de olivais intensivos, na verdade, para as pessoas da terra, o que não falta no Baixo Alentejo são serras, e de norte a sul são seis no total:
• Serra de Grândola ( 383 metros);
• Serra de Portel ( 418 metros);
• Serra do Mendro ( 424 metros);
• Serra da Adiça ( 522 metros);
• Serra do Cercal ( 378 metros).
A sudoeste peninsular, o Alentejo é a região mais rebaixada do que resta de uma velha cadeia de montanhas, a que alguns autores chamam de Hercínica e outros de Varisca, que começou a elevar-se no oceano há cerca de 380 milhões de anos. Os solos marinhos, que compunham o supercontinente da Pangeia, deixaram no subsolo xistos com fósseis que nos indicam o ambiente e a idade através de várias camadas rochosas que, inicialmente, jaziam horizontais e agora apresentam-se dobradas, pregueadas, fraturadas e deslocadas. Ao longo do tempo foram esmagadas pela erosão que varreu milhares de metros de espessura dos terrenos que lhes ficavam por cima e, portanto, os ocultavam reduzindo esta grande cordilheira à superfície planáltica. A paisagem alentejana, a que alguns geógrafos e geólogos têm chamado peneplanície, não corresponde ao conceito que a palavra planície encerra. Pelo contrário, sendo uma superfície elevada em relação ao nível dos mares, mereceu por parte dos estudiosos o nome de planalto ou altiplano elevado, o que é bem o caso da Meseta Ibérica, onde se inclui todo o sudoeste peninsular e, dentro dele, o Alentejo. É por essa razão que a “planície” alentejana não se encontra numa fase de aperfeiçoamento, mas sim em fase de degradação.
O Alentejo é uma região de poucos recursos, mas é a única região vinícola nacional com quase todos os tipos de solos existentes em Portugal. Com uma biodiversidade singular, as terras altas da Serra do Mendro e da Herdade Aldeia de Cima possuem uma enorme extensão de sobro e azinho e solos tipicamente de aproveitamento mediterrânico, ricos em xisto e aparentemente pobres, mas com uma enorme diversidade. As terras altas da Vidigueira têm um microclima ótimo e solos verdadeiramente fora de série para a cultura da vinha, registando também uma maior pluviosidade média anual do que as restantes terras vizinhas e uma temperatura mais amena dado estar próximo do Alqueva, o maior lago artificial da Europa. Por sua vez, a Serra do Mendro tem um ecossistema único, detentor de um património com elevado valor de biodiversidade e ainda intocado pela poluição industrial e urbana, onde os solos xistosos mantêm a humidade durante o dia e o calor durante a noite, originado um maior equilíbrio e, potencialmente, uma maior mineralidade ao vinho, tal como no Douro.
Uma equipa de geólogos estudou o património geológico da Herdade Aldeia de Cima e, entre a serra e o planalto, definiu quatro zonagens distintas. Com o objetivo de explorar a diversidade dos solos, as diferentes exposições solares e inesperadas amplitudes térmicas, foram delimitadas quatro zonagens originando 36 microterroirs naturais num total de 20 hectares, divididos em quatro vinhas: na Serra do Mendro a "Vinha dos Alfaiates" e no planalto a "Vinha da Familia", a "Vinha de Sant’Anna" e a "Vinha da Aldeya". Trabalhando uma diversidade complexa e extraordinária de castas indígenas e de castas perfeitamente adaptadas à região, compreendendo 65% de castas tintas (Alfrocheiro, Alicante Bouschet, Aragonês, Baga, Tinta Grossa e Trincadeira) e 35% de castas brancas (Alvarinho, Antão Vaz, Arinto, Perrum e Roupeiro), apostou-se numa viticultura em modo de produção integrada que mais tarde será convertida em produção biológica.
Em família, Luisa Amorim e Francisco Rêgo estão a criar vinhos que preservam a história do lugar, apresentados ao mercado dois anos após a vindima, numa produção pequena que pretende atingir cerca de 100.000 garrafas. Neste projeto procuram-se as texturas, a mineralidade dos solos, a antiguidade e a tradição. Os vinhos da Herdade Aldeia de Cima, clássicos e elegantes, preservam a tipicidade do seu lugar e são vinhos de enorme complexidade oriundos de solos heterogéneos e de castas indígenas e portuguesas. O imponente Armazém das Ramadas, construído em 1953 para acolher gado, foi o local escolhido para a construção da adega. Para a sua recuperação, falaram com as amigas e designers de interiores Ana Anahory e Felipa Almeida, cuja assinatura e bom gosto são facilmente identificáveis pela forma como trabalham a ligação à cultura e ao artesanato alentejano. O resultado final – belo, minimal e memorável – conjuga-se na perfeição com a arquitetura marcante deste edifício que prima pelas suas paredes grossas e caiadas a branco que sustentam uma estrutura metálica original com três alas, abraçando um espetacular par de silos no pátio central. Marcada pelo encontro entre o passado e o futuro, a adega proporciona uma enologia de intervenção mínima, onde se pretende evidenciar a eterogeneidade e o diferente carácter das micro parcelas, solos e castas.
Definiu-se que a fermentação dos vinhos em balseiros de carvalho e em cubas de cimento Nico Velo seria essencial para projetar uma adega com capacidade para 100.000 garrafas. Procurou-se a ancestralidade e a tradição na sala de estágio, encontrada nas pequenas tinajas de terracota, em que não existe uma peça igual à outra, e nas ânforas produzidos com pó cerâmico sobre uma estrutura de fibras naturais denominado cocciopesto. Desde o início ficou claro que as barricas tinham de ser de 500 litros, com um efeito de volume médio a respeitar a origem e as características das uvas da Vidigueira, dado que neste território os taninos apresentam-se mais polimerizados e de textura sedosa e, por essa razão, o vinho não precisa das concentrações elevadas que as barricas de pequeno volume aportam.
Este mesmo respeito pela cultura da aldeia reflete-se na imagem desenvolvida pelo designer Eduardo Aires. Qualquer que fosse o caminho, teria obrigatoriamente que transmitir Alentejo. No primeiro encontro, enquanto Luisa falava, Eduardo desenhava uns traços numa folha de papel branco que correspondiam à fachada de uma casa caiada de branco da pequena aldeia em ruínas, esboçando a ranhura da porta que nos convida a vivenciar a vida na Aldeia de Cima. Em conjunto partiram do zero e concentram-se no essencial: o significado do território que, desde 1758, tinha vivência herdeira de um passado marcado por cinco séculos de cultura árabe. Por sua vez, as cores selecionadas – presentes em toda a herdade e em variadíssimos detalhes nos interiores – foram o verde da folha do Sobreiro e a terracota da argila da terra que o viu crescer, não faltando o efeito das paredes caiadas de branco no papel de cada rótulo. A pensar num consumidor contemporâneo exigente, o objetivo foi criar uma imagem forte, mas também sóbria, e o resultado está à vista, reconhecido já em 2020 pelos European Design Awards, que atribuíram à Herdade Aldeia de Cima o prémio de ouro na categoria “packaging de bebidas alcoólicas”. É a primeira vez que uma gama de vinhos portugueses é considerada a melhor da Europa num dos mais prestigiados prémio de design do mundo.
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